Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", TF, CAP 17: A GRUTA DO AMOR E A BRUXA CALONA

O que se passou adiante não saberia dizer se foi uma luta ou algo sobrenatural do inconsciente. Que me recorde estávamos deitados naquela manta, ora ele por cima de cima; ora eu por cima dele.
Tasso Franco ,  Salvador | 29/07/2025 às 08:41
Calona observa a luta ao pé do cruzeiro
Foto: Seramov
CAP 17
A GRUTA DO AMOR E A VOLTA DA BRUXA CALONA
Ohana:

   Eu fico sempre na dúvida como começar a narrar um novo capítulo para não embaralhar a cabeça dos leitores e que possam melhor entender a minha narrativa, assim penso. 

  Minha decisão – com discreto apoio de Roque – para fazer uma nova consulta a vidente Samuelina estava amadurecida e falei com Sílvio nosso marceneiro que mora em Umbuzeiro para marcar uma data.

  Quando conti ao operário ele não gostou da ideia e, desta feita, quase em tom severo de advertência assim falou: - A senhora vai voltar para se consultar com aquela bruxa?

   Reprimi-o: - Ela não é bruxa e sim uma vidente, uma pessoa que lê destinos.

   - Para nós, do Umbuzeiro, ela é a chefe das bruxas da região e promove até um encontro anual em seu sitio onde reúne muitas delas, entre as quais, as mais famosas e até conhecidas aqui da “Serra dos Cardeais” estão Viluca, Calona e Matusa.  

  - Isso não me assusta. Não temo forças do invisível. Marque e me diga a data.

  Silvio resignou-se. De minha parte, não iria me submeter aos caprichos de um jovem trabalhador com cara de fedelho. A chuva abria sua torneira sobre a Serra com pingos grossos chocalhando-se nos telhados das casas. Haveria de passar até a data da consulta. Moto não combina com aguaceiro.

   O anão marcou uma data de quarta-feira pelo meio da manhã, dia que não gosto, e dizem, tem a proteção de Santa Brígida. Que assim fosse. Acertei com Marcelo a corrida até Umbuzeiro. 

   Acordei disposta e bem humorada na data e avisei ao Roque que iria ao Umbuzeiro. Ele não deu muita atenção e se dirigiu ao trabalho na marcenaria. É vero que nada me impediria, creio que pensava assim. Calcei botas de cano curto, arrumei-me com o vestido sensual bege, ajustei os seios num sutiã meia taça, batom discreto nos lábios e cheguei ao local da partida como combinado.

   Marcelo me cubou de baixo para cima e ousou dizer que meu traje não era compatível com uma viagem de moto. 
   - Em mim, mando eu - falei quase de forma desafiadora - e solicitei o capacete para seguirmos viagem. 

  Ele sorriu pelo canto da boca como se dissesse “se queres assim, que assim seja” e me entregou o capacete com uma touca de plástico para forrar e proteger meus cabelos. Coloquei-os com delicadeza. Em seguida, com as mãos lancei recortes da saia entre minhas pernas quase fazendo uma calça e trepei na garupa da moto.

   A manhã estava clara. O sol brilhava sem firmeza num céu de azul claro, quase cinza. Partimos. Na ladeira do Alecrim, a dois km do povoado, tentando me proteger dos solavancos da moto, abracei o motoboy com sedução e quando chegou no retão da Fazenda Cajueiro, mais tranquila, a moto deslizando em velocidade média, abri o zíper da jaqueta do motoboy e acariciei seu peitoral. 

   Creio, era o inconsciente que me levava a isso. Naquele momento, em nada pensava. Como as coisas deviam ser nessas alturas, sem maldades, suponho. Só um ato prazeroso e sem mais alcance.

   E veio o reverso. A mão esquerda de Marcelo alisava o meu joelho por baixo do tecido do vestido e subiu até minhas coxas. E na medida em que a moto avançava em direção ao Umbuzeiro, povoado que se aproximava e às nossas visitas, a mão avançava à minha intimidade. E assim seguimos até a entrada do arruado de casas onde morava a vidente.

   Marcelo estacionou a moto embaixo da cajazeira. O dia parecia mudar de tom com uma pele escura no céu, cor de morcego. 

   O anão me recebeu com cordialidade na recepção. Ousou: - A senhora está exuberante. Sorri em agradecimento e pedi um pouco de água. 

   - Água forte, batizada com essenciais de romãs, bom para acalmar as tensões, baixar o fogo – falou-me como se percebesse alguma coisa em meu semblante. 

   Em mais meia hora de chá de cadeira fui atendida pela vidente no mesmo local da primeira consulta. Os protocolos que segui foram os mesmos e sentei-me diante dela e da bola do cristal.

   - O que a traz de volta? – perguntou com um tom que me pareceu malicioso.

   - A mesma razão: o ciúme. Consegui imagens de quem presumivelmente quer conquistar meu marido, mas, sinto dúvidas se é isso mesmo, ou se essa pessoa está com outras intenções.

   Em instantes, retirei o celular da minha bolsa e mostrei-lhe algumas imagens. A vidente olhou-me com ar de soberba, retirou o pano verde que cobria a bola de cristal e mandou que colocasse as mãos sobre a bola como fizera na primeira consulta. 

  Após minutos de meditação com as mãos dela sobre a bola, as minhas já recolhidas ao meu colo, tez baixa, em silêncio profundo ergueu os olhos e disse-me que vira apenas uma relação de amizade, boa, relaxante, e que a tentação era outra e impressa nas curvas da velocidade, no soprar dos ventos e da chuva.

   Nisso, quando estava falando, ouvimos um estrondo. Arregalei os olhos e ela me acalmou: - O ar está seco e quando troveja no céu tem esse estampido que parece uma bomba de guerra. Não tenhas medo, mas prepare-se para lutar.
  Ela se levantou, fechou uma janela que dava para o quarto do sapo, olhou as fotos da madame que havia feito no meu celular, mandou que as guardasse, e sinalizou como igualmente me disse Roque que a senhora havia se simpatizado mais comigo do que com ele, chamou o anão com a sineta e pediu que eu fosse de volta para a casa, pois, quando há estrondos no céu, a chuva se aproxima, os raios se agitam e afugentam até as bruxas.

   Perguntei, então, se era verdade ser também uma bruxa e se conhecia algumas delas em nossa região.

   - Sei lhe dizer que as bruxas são divindades do bem que mal não causam a outras pessoas, mas, têm fama de demoníacas. Há algumas delas andando e voando em nosso território. Temos muitos turcos, ciganos e advinhas neste sertão. Ora se temos! São heranças ancestrais que veem de muitos anos, séculos e estão enraizadas no solo como as raízes dos umbuzeiros.

   Em seguida, com ares de trinfo, sinais de bruxa, cara de bruxa, nariz de bruxa, dente de ouro de bruxa, tocou a sineta e o anão apareceu. Levantei-me e sai sem nada mais falar e o miúdo desejou-me boa sorte e levou-me até a porta da saída. 
                                                   ***
   No terreiro, olhei para o céu e percebi que o tempo tinha mudado. As nuvens estavam carregadas de fumo. Céu de fogo. Marcelo colocou o capacete na minha cabeça e disse: - Vou correr um pouco mais que vai chover.  

   Partimos. A velocidade era suportável. Adiante, creio na Ladeira do Alecrim, o vento era mais forte e meu vestido tremulava, abracei com vigor o motoboy e o cavalo de ferro voava ou quase isso. No contorno da serra para chegar em nosso povoado o céu desabou e o motociclista entrou numa gruta onde havia um cruzeiro com peças de ex-votos. 

   - Não dá pra seguir. Vamos esperar passar a chuva um pouco. Felizmente não há trovões e raios, acercou-se de mim com delicadeza.

   Eu saltei da moto e encostei no portal do cruzeiro. Ele retirou uma manta do bagageiro da moto e um facão. Com a manta mandou proteger meu corpo e colocou o facão ao pé do cruzeiro. Eu sentia medo e ele me acalmava dizendo que era apenas um pé-d’água que passaria logo. Ouvi um forte grunhido na boca da gruta. Ele disse que poderia ser morcegos. Eu me apavorei mais ainda e o abracei com sofreguidão. 

   O que se passou adiante não saberia dizer se foi uma luta ou algo sobrenatural do inconsciente. Que me recorde estávamos deitados naquela manta, ora ele por cima de cima; ora eu por cima dele, algo me dava um gozo forte, estimulante, eu lutava com todas minhas forças para me desencilhar daquilo, parecia que tinha incorporado uma serpente e não conseguia descolar nossos corpos, pelo contrário o enroscava ainda mais, era algo bravio, ardente, e quando estávamos naquele confronto, aproximando de um êxtase,  ouvimos grunhidos ainda mais altos, mais estridentes e observei que uma bruxa nos olhava na entrada da gruta, certamente estava ali também para passar a chuva, eu me levantei rapidamente, peguei aquela manta e me cobri. Marcelo correu até onde estava o facão empunhou-o e gritou: - sai daqui Calona vai amedrontar o cão. 

   A essa altura, a chuva havia passado, a bruxa deu uns dois rodopios com a vassoura e ao retirar-se para o céu lançou uma cobra de sua boca em nossa direção. Marcelo, com destreza, cortou a cabeça da bicha que caiu no solo.

   Em seguida, disse-me: - Eu a conheço. É Calona, amiga de Sêo Djalma do mercado cigana que faz ponto como rezadeira de mãos. É gente boa. Não faz mal a ninguém, mas é ardilosa e gosta de dinheiro.

  Eu nada falei. Coloquei o capacete na cabeça e retornamos ao povoado. Estava com vestido molhado e com a alma lavada de pecados quando entrei em casa.

*** No próximo capítulo: Sou o nada ou sou o tudo da existência, eis a questão.