Cultura

LITERATURA; ROSA DE LIMA COMENTA A MULHER RUIVA, DE ORHAN PAMUK

Mas, além do drama, o livro traz muito da filosofia turca, o conceito de paternidade, a visão dos mundos dos ricos e dos pobres, a modernidade e o tradicional, enfim, para chegar a esse final o autor trilha por todos esses caminhos.
Rosa de Lima , Salvador | 01/08/2025 às 20:13
A Mulher Ruiva, de Orhan Pamuk
Foto: BJÁ
  Seguimos comentando a literatura produzida por estrangeiros. Creio que 90% dos nossos leitores nunca ouviram falar de Orhan Pamuk e não os culpo por isso. Há milhões de escritores no planeta a Oriente e a Ocidente e não tem como sequer saber dos seus nomes. Pamuk é turco nascido em Istambul e é considerado o mais destacado autor de seu país, Prêmio Nobel de 2006.

   Eis, pois, a diferença. O Brasil nunca conseguiu essa láurea, nem sequer andou perto. Quem sabe! Um dia possamos ainda obtê-la. Temos muitos Paulos Coelhos por aí, de Norte a Sul e até cantores e cantoras integram academias de letras quando deveriam estar nas de música. 

   Dizem os críticos internacionais que a obra mais importante de Orhan é “Neve” um romance muito especial. Esse livro ainda não li. 

   Nós vamos falar de outra obra dele que considero fenomenal: “A Mulher Ruiva” (Companhia das Letras, SP, 278 páginas, tradução de Luciano Vieira Machado, capa Raul Loureiro, 2023, R$45,00 portal Amazon) que aborda uma Turquia onde ainda se cavavam poços nos arredores de Istambul, com traços medievais, e uma cidade pujante com grandes investimentos imobiliários, uma metrópole mundial com suas inovações tecnológicas e qualidade de vida contemporâneos que se iguala a outros centros mundiais de destaque.

   No enredo o autor conta a história de um jovem adolescente da classe média (Cem) que foi abandonado pelo pai e cuja família se vê sem recursos para bancar seus estudo numa universidade. Cem se joga no mundo, nos arredores de Istambul, e vai trabalhar como ajudante de cavador de poços uma sub profissão promissora, pois, em descobrindo água, dividendos ganhos eram dobrados tanto para ele como para o cavador em si, um personagem que se tornou seu pai afetivo (Mahmut), maduro, genial, folclórico, de raiz e cujo sonho também era a riqueza. 

   A riqueza provinha da água e não ouro. Pois, a missão de Mahmut, cavador profissional, era encontrar água nesses arredores da cidade, onde o contratante a lhe pagar soma devida, esta preciosidade da natureza permitia a instalação de uma indústria. E, evidente, se o veio d’água fosse com fartura do líquido o contratado receberia uma gratificação que o deixaria bem de vida. E o ajudante pagaria sua universidade.

   Com esse enredo base o autor vai as profundezas da cultura turca tradicional, de sua pobreza e do comportamento dos habitantes suburbanos (Gebze) de Istambul, e na medida em que o cavador descia mais ao fundo em busca da água e Cem e um outro ajudante iam retirando a terra com um balde, a amizade dos personagens vai se estreitando e Pamub concentra toda sua criatividade literária em Mahmut (pai adotivo) e Cem, rapaz ainda cheirando a leite, carente de afeto e de cultura.

   Os diálogos entre ambos são fantásticos. Exalta Cem: - Mestre Mahmut me advertia muitas vezes para ter mais cuidado: “Se um aprendiz de cavador de poços não tiver juízo, corre o risco de aleijar seu mestre, e se for descuidado, pode até acabar por matar o mestre. () Eu gostava quando o mestre me olhava nos olhos e me contava histórias terríveis que encerravam um ensinamento. () Eu percebia que, em sua mente, o submundo, o mundo dos mortos e as profundezas da terra correspondiam, cada um deles, a partes determinadas e reconhecidas do céu e do inferno”.

   A narrativa de Pamud exala criatividade: - Meu pai nunca me contava histórias nem contos de fadas. Mas mestre Mahmut contava todas as noites, inspirado pelas imagens desfocadas da TV, por alguma dificuldade que tivéssemos de enfrentar naquele dia ou por uma lembrança antiga. Era difícil saber quais partes de suas histórias eram verdadeiras e quais eram imaginárias, muito menos onde começava e onde terminava () Certa vez me contou que, quando criança, foi raptado por um gigante e levado para um mundo subterrâneo. () Lá era um palácio cintilante”.

   Nas caminhadas dos dois a cidade de Ongoren para comprar mantimentos, parar ao Café Rumeliano para um drink, numa noite em que o mestre não foi com Cem ele se encantou por uma mulher ruiva que trabalhava num teatro popular a qual mudaria o rumo de sua vida e o enredo do romance. 

   É com essa mulher ruiva, mais velha do que ele, que Cem tem um encontro de sexo fortuito e daí vai nascer um filho. 

   O jovem, no entanto, só vai saber disso muitos anos depois, quando já havia deixado o trabalho de auxiliar de cavador de poços e se tornara um grande empresário e construtor imobiliário. 

   E ao lançar um empreendimento de porte nos arredores de Istambul, outra cidade, moderna, pujante, vê que era a área onde outrora serviu de ajudante do mestre Mahmut e onde apaixonara-se pela mulher ruiva a ponto de deixar o mestre a ver navios sem lhe dar satisfação. 

   Cem vai montando em sua mente as pedras do quebra-cabeça do passado: - Onde estaria Mahmut? Teria achado água? Onde vivia a mulher ruiva? O que aconteceu com ambos? O que existia no lugar do poço? E o Café Rumeliano?

   E, nessa peregrinação da memória e em visita ao local onde antes era o poço vai se deparar com seu filho (Enver), nascido do ‘caso’ fortuito com a mulher ruiva, o qual não o conhecia nem estava disposto a conhece-lo, porém, queria o que fosse de direito em herança para ele e sua mamãe Ruiva.

   Ao passo que, Cem, na inicial não disposto a ter contato com o jovem, vai se encontrar com ele na área do antigo poço, há uma briga entre ambos e Cem é assassinado pelo filho e jogado no fundo do poço.

   O leitor pode perceber que o enredo tem um fim dramático o que, se imagina, é sempre agradável para quem ler e deseja algo como uma recompensa, do tipo quem pariu Mateus que balance. E se Cem não quis fazer o reconhecimento do filho e também pensou em mata-lo que mora.

   Mas, além do drama, o livro traz muito da filosofia turca, o conceito de paternidade, a visão dos mundos dos ricos e dos pobres, a modernidade e o tradicional, enfim, para chegar a esse final o autor trilha por todos esses caminhos.

    Quando ambos estão à beira do poço, já desativado, relata o autor com maestria: - O fundo do poço está tão distante que a princípio nem conseguiríamos vê-lo. Por fim, consegui ver luz refletida numa poça de água ou lama, lá embaixo. A distância era impressionante. () Não me pergunte por quê, mas neste momento pensei em Deus”, diz Cem.

  - Deus está por toda parte. Em cima e embaixo, ao norte e no sul. Em todos lugares”, respondeu o jovem () Os turcos ricos ocidentalizados sempre dizem ‘minha relação com Deus não é de sua conta’ quando defendem o secularismo para poder esconder sua impiedade sob a capa da modernidade”, estilhaça o filho.

   Os diálogos entre pai e filho a beira do poço são reveladores do distanciamento de duas culturas, o pai já integrado a uma Turquia ocidentalizada, supostamente moderna, com marketing imobiliário avançado; e o filho apegado as raízes e a Alah o Onipotente criador do Universo, entendendo que a paternidade era muito importante para ele e o pai a negava.

  “A Mulher Ruiva” é uma obra instigante, atraente, aliciante e que conduz o leitor ao mundo da cultura turca e das visões de uma Turquia, onde ainda se cavava poços com picaretas para se obter água e montar uma indústria; e uma Turquia ocidentalizada, contemporânea. Há um choque de culturas e o autor alicerça o enredo com fábulas, parábolas e passagens que maravilham os leitores.