Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA",TF, 18: BANHO PURIFICADOR DA ALMA NO SER DO NADA

A receita: Usar amuletos ou talismãs como o olho grego, a cruz de São Bento ou nó-de-bruxa, tomar um banho de alecrim com água salgada para fazer uma limpeza espiritual
Tasso Franco , Salvador | 05/08/2025 às 08:44
Descarrego ou banho purificador da alma
Foto: Seramov
  CAP 18
                 O BANHO PURIFICADOR DA ALMA NO SER DO NADA
  
   Ohana: 

   Diria que em pensamentos estou um caco. Literal: um vaso de planta quebrado com terra derramada no chão e as raízes à vista. Fico assim imaginando quem sou eu mesma. Pareço um nada. Não que esteja com culpa de alguma coisa, carregando algum fardo nas costas. Encaro o episódio da gruta como uma luta, uma porfia e que pode acontecer na vida de qualquer ser. Se houve algo mais além da luta corporal não percebi naquele momento do confronto.

   Agora, mais calma, sim. Imagino coisas. Suponho que façam maldades comigo. No íntimo do meu ser, da existência, do nada da vida, algo existiu além da luta. Mas, confesso que não sei explicar se partiu de mim, do inconsciente ou do vestido. Se tivesse feito a viagem com outra roupa é provável que nada tivesse ocorrido. Um vestido é atraente as duas partes. E quando molhado e colado a um corpo, um homem se alucina.

   Eu sozinha para delinear esses pensamentos não consigo. Ao contar ao Roque sobre a segunda viagem a Umbuzeiro, narrei só a primeira parte da consulta a Samuelina e de agradável que foi saber que ele estava preservado de olhares e seguiria somente meu, único, e também lhe contei que ele tinha razão quando dissera que a madame Fonseca teve olhares mais chamativos para minha pessoa do que para ele. 

   Diria também a vocês, em segredo, que gostei disso. A palavra certa não seria gostar, mas, considerar um ponto de vista que era novo para mim, não me incomodaria se acontecesse de forma mais presencial mulher com mulher embora não saiba como reagir. Seria um teste, pensava. Algo novo.

   Roque entendeu que os sonhos com as cobras, a ciumeira e tudo mais que passava na minha cabeça, salvo o trauma da morte das crianças, estava encerrado e tocaríamos a nossa vida adiante como sempre levamos. Ele simplificava as coisas ao seu modo prático de viver.

   Eu nada acrescentei e fiz gestos de consentimento. Mas também, no íntimo, não representava algo afirmativo de minha pessoa achando que, de fato, tinha tudo encerrado. Havia a luta com o motoboy a resolver e a bruxa Calona como testemunha e possível alcoviteira era preocupante. Se pusesse entre os dentes a contar a terceiros poderia ser uma agravante. Coisa ruim ou sensacionalista se espalha como um rastilho de pólvora. É o que dizem. Agora, com as redes sociais, o barril de pólvora poderia estourar aos meus pés. Teria, porém, meus argumentos de defesa e Marcelo, tinha certeza, não abriria a boca para nada falar. E se algo dissesse seria ao meu favor.

   Não via em nossa luta vencedores. Foi um episódio fortuito, acidental, passageiro como a chuva. E se gozo algum houve as águas da enxurrada levaram serra abaixo. Não via culpa em nada, nem em mim, nem na minha formação religiosa, nem na comunidade, nem na padaria de Sêo Badu, nem no diácono Clovis. Nós somos assim, o povo. A gente simples que enfrenta e resolve nossos problemas nós mesmos. 

   O rastilho da pólvora nas redes sociais, porém, não segue um caminho linear. Mente-se, inventa-se, distorce-se, calunia-se e fica-se por isso mesmo. Quem sofre é quem está na berlinda e eu não queria estar nela. Tinha que matar qualquer insinuação no nascedouro.
                                                  ***
   Resolvi compartilhar com Alicinha meus anseios e passei-lhe um Whats App noticiando minha nova consulta a vidente e o episódio da gruta. 

   Como eu mesma esperava Alicinha ficou mais chateada com a consulta a vidente do que com a luta, que atribuiu ao inconsciente, porém disse, com base nos seus estudos psicológicos, já citando um outro autor chamado Jung, que a luta poderia ter alguma relação com os sonhos que tinha com a cobra, o símbolo fálico, havendo uma mensagem para o ego. E o que houve, no embate, fora uma descarga da tensão psíquica mediante a realização de um desejo.

   Embaralhei ainda mais minha cabeça até para decifrar o que comentou e entendi que que estaria tudo relacionado aos sonhos com as cobras e, durante a luta, se alguma coisa a mais aconteceu a responsável foi a psiqué. 

   Confesso a vocês que no meu saber básico da padaria de Seu Badu e do saber profundo de vivência da movelaria desconheço quem é esse Jung, o que significa ego e o que representa a psiqué. 

   E isso tudo junto aos meus saberes do senso comum não tinha a menor valia e o melhor era fazer o que fiz, procurar Sêo Djalma do feijão para obter mais informações sobre a bruxa Calona e o que ela poderia ter de veneno entre os dentes e a língua.

    Em visita ao mercado joguei um verde para colher maduro em Sêo Djalma e perguntei se a bruxa já havia devolvido sua vassoura, enquanto compassadamente colocava dois litros do mulatinho numa sacola. Ele achou minha pergunta interessante e alongou a conversa querendo saber porque eu estava “tão interessada nesse assunto”, de menor importância, pois, assim que Calona aparecesse para ler mãos dos tabaréus aos sábados dia da feira livre na praça, traria sua vassoura. E se não a trouxesse “com o bondoso coração que tem, com 20 moedas de real faria a devolução” e inquiriu que, pelo meu semblante de face tensa, eu parecia preocupada com a bruxa ou com alguma coisa que acontecera.

   - Desembuche – tentou apaziguar-me entregando o feijão empacotado. Se ela lhe fez algum mal, que duvido, lhe ensino a receita para se livrar de insinuações maldosas.

   - Mal não me fez, mas temo que espalhe inverdades sobre a minha pessoa, pois, sendo amiga da Samuelina, do Umbuzeiro, com quem estive para uma consulta possa alcovitar alguma coisa.

   - É preocupante. Samuelina é a rainha das bruxas. Se soubesse que a senhora iria até ela desaconselharia. Quem foi ouvir seus conselhos ela amarra as conversas e fotografias na boca de um sapo e fica permanentemente tomando dinheiro dos clientes. E tem essas olheiras, como a Calona, a Mazoca, e outras para mexericar a vida alheia, que são ligadas a ela, carne e unha.

  - O que faço, então? – perguntei ao barraqueiro.

  - Falarei com ela para saber quanto custa o seu silêncio e o que lhe narrou Samuelina. Ou se ela viu algo de suspeito nas bolas de cristal que usam. De repente não tem nada e a senhora está apenas aturdida. 
                                                         ***
   Uma semana depois voltei ao mercado e Sêo Djalma me narrou que Calona foi de uma mudez de estátua de pedra, que sabia e vira muita coisa, porém, nada lhe falaria. E como boa cigana, de origem, queria quinhentas notas de real como pagamento pelo silêncio. Menos mal. 

   Dias depois, levei as moedas retiradas de um mealheiro porco de barro que me acompanhava há anos e era da poupança que faria para meu futuro. Foram entregues mais de mil moedas porque havia muitas de 0,50 de real e de O,25. 

   Como uma Judas moderna passei ao Sêo Djalma um saco com essas moedas e ele fez chegar a Calona, certamente com direito a sua comissão de intermediário.

  No momento da entrega das moedas o comerciante acrescentou em fala irônica que, para me livrar de algum cerco de Calona ou de outras possíveis bruxas que tivesse a me atormentar ou ameaçar, eu sendo esposa de Roque marceneiro mandasse que ele construísse uma cruz invertida de bom tamanho e espetasse em cima de nossa casa, cruz com ponta no cimo, que nenhuma delas ousaria nos rondar, como assim não ousam passar sobre as casas de dona Rolinha, do diácono Clóvis, de Arnaldo Calça Curta, de Nestor do Fabrico, de Bira Painho, todos ex pecadores. 

  E, de minha parte, pessoalmente, usar amuletos ou talismãs como o olho grego, a cruz de São Bento ou nó-de-bruxa, tomar um banho de alecrim com água salgada para fazer uma limpeza espiritual, um descarrego em beira de fonte, defumar a casa com ervas e incensos, e assim por diante, tudo sem exagero ou espalhafate pra não levantar suspeita de vizinhos e das línguas compridas do povoado, mostrando discrição e se concentrando em orações para São João Batista, senhora da Guia ou o santo ou santa de minha preferência e que não ouvisse conselhos de padres e videntes tudo sendo feito por mim mesma.

  Já sai do mercado em direção a minha casa com outro astral, mais leve, mais solta, mais confiante e quando cheguei em casa coloquei uma panela de alumínio cheia d’água até a boca para ferver, fui ao nosso quintal e recolhi umas folhas de arruda, tantos outros ramos de capim santo e alecrim, batia-as no meu pilão de bronze e tudo foi colocado e misturado numa bacia de ferro levei para a beira de fonte e tomei aquele banho perfumado de cima para baixo, a gosto, jogando as canecas d’água quente a morna na cabeça, nos ombros, nas costas, nos seis, deixando que escorresse por minha vulva, coxas, pernas e pés, escovando pé sobre pé, primeiro o direito sobre o esquerdo e vice versa, tudo acrescido de orações da senhora de Fátima minha mãezinha do coração em silêncio absoluto somente ouvindo o som das águas e tendo as estrelas do Cruzeiro do Sul como testemunha.
   
*** Próximo capítulo – Alicinha testa namorada trans na noite do Natal