Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", DE TF, CAP 20: AS MENINAS CHEGARAM PARA O NATAL

Uma intelectual visita o povoado onde vive um povo simples e com seu modo particular de existir
Tasso Franco , Salvador | 19/08/2025 às 09:34
Ohana, Alicinha (com buquê), Roque e Magu
Foto: sERAMOV
CAP 20
  
  AS MENINAS CHEGARAM PARA O NATAL E A ADMIRAÇÃO DE ROQUE PELO ALHEIO

   Ohana:

   As meninas chegaram ao povoado na antevéspera do Natal e nós a recebemos com muita alegria. Alicinha estava um amor em pessoa. lindíssima, contente e nos apresentou a professora Manuela Ignácia Nassau, titular em letras da US, parente distante dos Nassau holandeses de Pernambuco, ruiva sardenta de olhos claros, alta, sedutora, voz melindrosa, que se disse encantada por estar em nossa casa e pela amizade de Alice – assim tratou nossa filha – e deu-nos de mimos a Roque um chapéu de pano típico da capital sergipana com o nome Aracaju na altura da testa e a mim um livro do poeta Fernando Pessoa destacando ser o seu poeta favorito e pedindo que eu tivesse atenção especial aos poemas intitulados “Tabacaria”, “Não sei quantas almas tenho” e “Colhe o dia porque és ele”.

   Em seguida, recitou a primeira estrofe do que considera genial em “Tabacaria”:  Não sou nada/Nunca serei nada/Não posso querer ser nada/À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

  Quis, creio, mostrar todo seu saber e nós – digo eu e Roque – ficamos num misto de admiração e indiferença uma vez que nunca lemos nada do poeta português citado por ela, mas, por educação assentimos que apreciamos seus dizeres.

  Roque, no entanto, por ser mais racional soletrou que em nosso povoado não tínhamos uma tabacaria mas ele frequentava desde jovem a Barbearia de Soté onde a prosa corre solta entre um corte e outro de cabelos dos homens, só dos homens – frisou um pouco malicioso – e todos os sonhos do mundo são revelados pelos cardealenses a ponto de muitos deles conhecerem Portugal e a Europa sem nunca terem ido sequer a Aracaju, o que, de fato, mostra que esse Pessoa tem razão quando diz que “não sou nada, nunca serei nada mas é tudo”.

   Manuela ficou admirada com a interpelação de Roque e adiantou: - Justo, correto, Pessoa nesse mesmo poema fala do Esteves sem metafísica, um cliente da tabacaria personificado na libertação, e esses cardealenses que vós citastes se pensam assim estão corretos porque conhecer a Europa não significa vivenciar com a presença. 

   – Complexo, complexo, intervi de bom humor, suponho também sem a tal da metafísica, palavra que pela primeira vez ouvi falar e não saberia dizer o que significa nem tampouco estou querendo saber, ao menos nesse momento, e disse para nos acomodarmos nas cadeiras ao redor da mesa onde serviria aipim cozido, cubos de carne do sol fritos bem passados ao gosto de Roque, cuscuz de milho Bião, manteiga de garrafa e café Cardeal com leite in natura de leiteiro Costa e pães pulos do gato crocante e de sal da padaria de Sêo Badu, pedindo também a intelectual que voltaríamos a falar de poesia noutra ocasião nos reservando a algo mais trivial e prazeroso no momento da ceia, e nos benzemos e iniciamos o serviço posto à mesa e que cada qual se servisse à gosto e à vontade, fatiando o cuscuz em losangos para facilitar a inicial comilança.

   Diria que todos apreciaram bastante o jantar e Manuela elogiou o sabor da carne do sol com as cebolinhas fritas e perguntou se eu havia as passado numa caçarola Creuset pois a textura estava de uma qualidade francesa e eu sorri pelo canto da boca e respondi que era caçarola de cobre feita por uma cigana no Tiruco, comum de se encontrar e comprar na região, e que dá um sabor especial as comidas, e ela achou interessante, quis saber mais das comunidades ciganas do Sertão, e se elas existiam em nossa proximidade, e eu disse que sim, “são comuns ao nosso povo, as mulheres leem mãos e usam dentes de ouro; e os homens comercializam animais e tachos de cobre, panelas e almofarizes e na superstição popular e lendas locais as mulheres mais velhas voam como bruxas e têm esse poder de locomoção”.

   Manuela ficou vivamente interessada na minha descrição e Roque balançava a cabeça como calango verde da serra ora no sentido do não; ora no sentido do sim, rindo por vezes e devorando a carne de sol como gosta, enquanto Alicinha, mais discreta, refutava-me dizendo que “nem tudo que vem do povo, que o povo fala, se deve acreditar e que o tempo das bruxas voadoras ficaram nas páginas da literatura e se bruxas existem e dizem que até o presidente Putin da Rússia se aconselha com elas, pois, são modernas, usam computadores e vivem com os pés no chão ou em carpetes com frisos de ouro” e Manuela ia astuciando a nossa conversa de olhos arregalados e quando falei que na feira do Natal na praça da Capela com certeza elas estariam por lá, as ciganas, lendo mãos e fazendo adivinhações, se interessou em conhece-las.

    Depois do jantar fomos a sala assistir TV e nos dirigimos aos nossos quartos para dormir, eu e Roque na nossa estofada larga e as convidadas em camas de solteiros separadas, uma que fora (e ainda é) de Alicinha, em seu aposento, e uma outra que Roque providenciou para Manuela. Precauções de pai, diria, sem muito sentido, pois se quisessem praticar algum ato libidinoso nada impediria.

   Mas, pelo visto e diante do que me narrou Alicinha, no dia a seguir e em particular, ficaram dialogando cada qual em sua cama até altas horas sobre as bruxas, quando Manuela quis saber porque eu usava um crucifixo com o Nó de Bruxa e em nossa casa havia uma cruz invertida na cumieira, minha filha explicando que toda gente do sertão é supersticiosa, temente a Deus, e isso fazia parte da nossa cultura, ademais, pediu a distinta que não se aprofundasse conosco falando de Fernando Pessoa, uma vez que não conhecíamos a obra do poeta e poderia se dar um diálogo de mudos ou interpretações maliciosas como Roque se dispôs a fazer diante da Tabacaria, o que ela não concordou dizendo que é sempre salutar falar dos poetas mesmo que as pessoas não entendam o que eles dizem, e os que pouco entendam que sejam ao seu modo de pensar e ela teria adorado a interpretação de Roque sobre a Barbearia do Soté, segundo suas palavras “algo sábio”
.
   No dia seguinte, véspera do Natal fomos a feira livre na praça da Capela onde Roque estaria a vender nossas peças de móveis e preenchemos a manhã e a parte inicial deste dia andando nos corredores da feira livre e Manuela ficou admirada com a fartura e preços baixos dos produtos à venda, nos modelos medievais de expor as mercadorias no solo protegidas apenas em panos ou plásticos, ovos de galinhas em pilhas, perus ainda vivos e com pés amarrados por pindobas, caçuás de umbus, cestos de cajus, montículos de mangas, porções de castanhas assadas, licouris em cordinhas de sisal, goiabas aos montes, rapaduras, chouriços, mel em garrafas, manteigas em litros, temperos de todos os tipos das salsinhas às hortelãs, tudo de um viço e um verde encantador, de um perfume agradável, perfume da terra, do meio ambiente saudável e isso encantava a intelectual, a qual, em cochichos com Alicinha disse ser “o povoado dos seus pais o paraíso terrestre, melhor do que o paraíso celeste, pois em tudo se oferta de bom e barato, bem diferente da capital Aracaju, onde, pelo exposto nenhum cardealense passa fome”, o que fez com que Alicinha meneasse a cabeça com leves toques de aceitação.

   Em determinado momento, nas proximidades do mercado paramos em frente a duas tendas da venda de fumo em rolos, fumo de alta qualidade, o vendedor a dizer que os rolos tinham sido trazidos dos campos de Arapiraca e era um fumo que, quando picado, processado com o uso de um canivete Corneta e acomodado num papel de seda Tabaris, fabricado em Estância, produzia um cigarro melhor do que aqueles vendidos nas melhores tabacarias do mundo, e esse falar, esse soletrar em vendas do homem, Manuela classificou de “fantástico”, de uma “rudeza primorosa”, isso acendeu a sua curiosidade, a qual, se repente se sentiu como se estivesse nas portas da tabacaria de Fernando Pessoa, da famosa tabacaria onde o poeta passava dia sim; dia não para comprar uma cigarrilha que fosse e praticar um dedo de prosa com o seu dono, e se acercou da minha pessoa e da Alicinha e disse que estava diante da metafísica ao vivo e havia um freguês a comprar quatro dedos do fumo, a cheirar, a astuciar, a sentir o aroma do grosso negro, a qualidade, esfregando o polegar no fumo e levando-o ao nariz, disse que “eis o Esteves revivido”, isso falado numa exaltação fora de si, que, sinceramente, não entendia onde ela queria chegar e Alicinha sorria discretamente, quando o senhor do fumo, o vendedor estirou aquele rolo parecendo uma manjuba e disse se aproximando de nós, “madames, o fumo é de qualidade, faço um bom preço para as senhoras”, e nós agradecemos a oferta, Alicinha puxou Manuela pelo braço, chamando-a “Magu.. Magu... vamos”  e seguimos adiante até a barraca de Sêo Djalma.

   Magu, eis seu apelido carinhoso dito por Alicinha, no entanto, não desgrudava de Fernando Pessoa e da existência, do infinito existencial, e viu com seus olhos, segundo cochichos à Alice, em pleno século XXI, do cigarro eletrônico, do cigarro de vape, o homem artesanal do fumo, o ser integral rural, puro, primitivos, alheio a inteligência artificial e ao mundo moderno dos ions e algoritmos, e em frente ao Sêo Djalma, sem ainda ser apresentada recitava outro trecho de Tabacaria, “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? /Ser o que penso? Mas penso em tanta coisa!/ E a tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!... a ponto do barraqueiro ficar admirado com aquele ser extra terrestre ao seus ambiente e me perguntar se estava diante de uma nova visionária, de uma aderente de Calona, e eu disse que se tratava de uma poetisa, de uma intelectual, e ele parece ter entendido alguma coisa e a cumprimentou desejando boa estada no povoado e sentia-se alegre com sua visita ao mercado e a sua tenda, onde bom mesmo eram a farinha nova que chegou de Santo Antônio de Jesus e o feijão carioquinha de Irecê, além do caldinho da feijoada que estava a servir a outros clientes, e perguntou se aceitávamos e dissemos que sim, e ele colocou três porções em copinhos de cerâmica, apimentou-os delicadamente com pingos de limão e pimenta de cheiro, e quentinhos estavam e deliciosos a descer em nossas gargantas com gratidão e Magu tanto gostou que repetiu a dose e o barraqueiro acrescentou que bom era logo em seguida, ou entre goles, saborear uma cerveja gelada.

   Nisso, nesse bate-papo informal se aproximaram duas ciganas bem falantes e vestidas a caráter, aqueles vestidos tropicalistas chamativos, e ficaram a dizer em nossos ouvidos, “vamos ler as mãos madames”, “tira a sorte grande, vem deixa eu ler tua mão” – uma delas assim falou e pegou pelo braço de Manuela e ela ficou assustada e voltou-se para mim e perguntou se era bom ela ler sua mão e eu disse que não fazia mal, mas que acertasse o preço antes, e ela disse que a cigana estava querendo 30 reais para ler e eu disse que pagasse 10 e estava de bom preço, e Seo Djalma e Alicinha só olhavam, e a cigana levou-a para um canto da tenda, e eu achei que era a Calona, mas, nada disse nem perguntei a Djalma, e ela leu a mão da intelectual e ela votou com aquele riso amarelo no rosto dizendo que a cigana lhe havia dito muitas coisas boas e outras que não concordava, mas, “tudo bem, adorei apesar de caminhos cruzados e armadilhas que vou enfrentar segundo falou” e eu senti que a coisa não foi boa para ela.

  Depois que o sino da capela já havia batido meio dia voltamos para casa e almoçamos um improvisado churrasco assado pela mãe de Roque. 

  O restante da tarde foi de trabalho para preparar a ceia da noite facilitada pelo fato de que Roque havia matado e temperado o peru de véspera, estava devidamente recheado e costurado e logo cedo levou-o para a Padaria de São Badu a fim de assá-lo e eu preparei com as meninas os frios e os petiscos que saborearíamos após a missa do galo, a ser ministrada pelo padre Graciliano Bomfim, vindo ao que dizem da cidade de Itaberaba a pedido do diácono Clóvis, e fomos todos a capela e oramos, e Manuela disse que gostou demais da homilia do padre Bomfim, pois,  lembrou Pessoa e o poema “Colhe o dia, porque és ele”, porque o ser tem que viver o presente, valorizar cada dia como único e essencial, e ela voltou a dizer que não concordara com o que lhe dissera a cigana ao ler sua mão, pois, como diz o poeta português “uns com os olhos postos no passado/ Veem o que não vêem outros, / os mesmos olhos do futuro, vêem / o que não podem ver-se... e quis encompridar a conversa e Roque, com seu saber da Barbaria do Soté, da Padaraia do Seu Badu, disse esqueça isso minha filha vamos brindar o Natal e espoucou uma garrafa de espumante Moscatel branco da Basso & Filho, vinho canção, e eu peguei taças de plástico e ele foi enchendo uma a uma e nós brindamos dando graças ao bom Deus e desejando feliz natal e estavam presentes, a mãe de Roque e Tio Damasceno e esposa que eram nossos convidados e tudo se passou numa alegria imensa.
                                                    ***
   No outro dia, cedo, partimos para uma caminhada até a Serra dos Cardeais, como programado de maneira ecologicamente correta enquanto Roque e sua mãe ficaram em casa rearrumando a cozinha e organizando as carnes para um churrasco a ser servido assim que voltássemos da serra e as meninas estavam saltitantes, todas usando conjuntos moletons, tênis e mochilas de costaa; e eu optei por uma malha de corredor de maratona e lá fomos nós, e na rua que acessa o monte o artesão Gudé gravava nuns canequinhos de alumínio corações e os nomes das pessoas, e vendia água, alfeles, uns chapéus de panos com desenhos de cardeais, e compramos cada uma um deles, e Alicinha ofereceu um canequinho com o dizer Magu, lembrança da serra, a sua amiguinha, e começamos a subir a montanha, a observar a vegetação, os bichos miúdos que corriam pela caatinga, o tempo era de verão mas ainda havia viço nas plantas provocado pelas chuvas das trovoadas de novembro, e quando chegamos na Barra do Vento o soprar da ventania que vinha de Sergipe nos assustou e o tempo foi dando uma virada e eu disse as meninas para apressarmos o passo, como outras pessoas que faziam a trilha já estavam a estirar e alongar as pernas, pois ainda iriamos até a gruta do cruzeiro e andamos mais rápido e Magu ia fazendo fotos da flora que encontrava pela frente e admirou-se e fotografou uma cobra, pareceu-me uma jararaca, e eu disse para ficarem distantes daquela bicha pois era venenosa, e ao saírmos da gruta depois de orarmos no cruzeiro, grunhidos ecoaram do céu, vimos um desfile de bruxas com suas vassouras e cabelos assanhados a uivar, a gemer, e Magu começou a gritar de medo, e ao invés de fotografá-las colocou o celular na bag e começou a correr ladeira baixo e todos nós corríamos, e eu disse para elas não terem medo pois deveriam ser bruxas que saíram da Convenção sobre IA na casa de Samuelina e estavam voltando para suas casas e a as bruxas zuniam e grunhiam em direção da Serra do Lagarto e pipocou um trovão enviado por São Pedro, que aliviou as tensões, assim penso, porque as bruxas sumiram do céu, mas nós continuamos nossa corrida sendo molhadas pelos grossos pingos da chuva e chegamos em  casa ensopados d’água, esbaforidas, exaustas, sendo acolhidas por Roque e sua mãe que nos deu toalhas felpudas para nos enxugar e Roque ficou admirado, assim imagino, com o ensopar da roupa de Magu, o tecido colado no corpo com seu peru delineado no moleton, aquela formosura, e eu fiquei olhando para o semblante de Roque, com aquela admiração, com aqueles olhos vidrados e, discretamente, lhe perguntei se havia gostado de alguma coisa e ele não disse nem sim, nem não.

  Já recompostas, desfrutamos do churrasco servido em espetinhos e cortes especiais, o tempo limpo, o céu claro, Roque a dizer que chuva de verão é assim mesmo “só molha o chão” e Magu, ainda sensual, usando outro moleton de tecido fino com o Bráulio saliente olhava para a cruz invertida de nossa casa e perguntava a Alice onde ela comprava um Nó de Bruxa ou Cruz de São Bento para usar, enquanto Roque, distraído com o alheio, cortou o dedo com a faca ao fatiar um pedaço de alcatra para mim e eu fiquei a sorrir, a pilheriar e a dizer “quem aprecia o dos outros fica sem nada”.

*** No próximo capitulo (final) A viagem a Aracaju e o marceneiro do século XXI.