Du Bois mostra no seu livro que foram criados 34 institutos e universidades para negros nos EUA no final do século XIX, ele próprio formado em Fisk, em 1888
Rosa de Lima , Salvador |
12/04/2025 às 10:02
Comentário da semana de Rosa de Lima
Foto: BJÁ
Uma introdução mínima sobre o autor: William Edward Burghardt Du Bois que assina suas obras W.E.B. Du Bois e o meio literário conhece como Du Bois nasceu na segunda quadra do século XIX, em Breat Barrington, Massachusetts, EUA, descendente de africanos, franceses e holandeses. Sociólogo formado pela Fisk University, Nashville, Tennessee, 1888, primeiro afro-americano a receber o título de P.H.D, em Harvard, estudou por mais dois anos na Universidade de Berlim.
É considerado uma espécie de pai da moderna militância negra, um pensador do seu povo e do movimento negro mundial. Seu livro "As Almas do Povo Negro", 1903 (Editora Veneta, SP, 2021, tradução de Alexandre Boide, ilustrações de Luciano Feijão, capa Gustavo Piqueira, 293 páginas, R$555,00 nos portais) é uma espécie de "bíblia política da raça negra", segundo William Ferris.
O livro, de fato, revela o pensamento de Du Bois num momento em que os movimentos de afirmação da negritude nos EUA ainda engatinhavam, final do século XIX. Hoje, mais de um século depois (122 anos de sua primeira publicação, em inglês) continua sendo o mais importante livro escrito por um negro nos EUA, com ideias que se irradiaram por outros países, especialmente o Brasil, e influenciou intelectuais de outros continentes que abordaram essa temática.
E o que tem de especial nas narrativas de Du Bois? São textos publicados por capítulos com ordenamento cronológico e pensamento articulado abordando as questões raciais no Sul dos Estados Unidos, em especial, porém um grito de alerta ao país, com expressões inovadores e um novo postulado, compreensão diferenciada do papel do negro na sociedade norte americana.
E, dessa forma, Du Bois tanto criticava posturas de segmentos negros como o programa bem sucedido de escolas de Brooker T. Washington (Instituto Tuskegee) cujo foco se centralizava na preparação de mão de obra em nível inferior (ou médio) dos afro-americanos para atuarem como mão de obra especializa na indústrias nascentes; quanto condena os governos que se seguiram a Abraham Lincoln, pós guerra de Secessão (libertação dos negros) e que não adotaram programas mais consistentes de amparo a essa imensa comunidade negra, no total, nessa época, em torno de 9 a 10 milhões de indivíduos..
Observe-se, dessa maneira que o autor traz a lume para o debate e também à luta intelectual, (não armada, porém combativa dos movimentos sociais) dois conceitos fundamentais para emular suas teses, alicerçados na necessidade de acabar com o véu separatório entre brancos e negros, véu racista intenso existente de forma arraigada, apartheid fortíssimo, época em que a Ku Klux Kan três movimentos raciais dos brancos defendiam o separatismo e até extermínio dos negros; e se estabelecer uma nova consciência diminuindo e eliminando a dupla consciência.
Isto é, modificar (e exterminar) de uma vez por todas o pensamento dominante de intelectuais e educadores negros financiados por magnatas brancos os quais possuiam escolas e cursos técnicos em graus médios, mantendo os negros numa semi-escravidão, sem alcançarem os topos dos empregos na sociedade industrial e citadina nascente e que floresceu no século XX tornando os Estados Unidos uma potência econômica mundial e também militar e tecnologica.
Du Bois, portanto, defendia que os negros fossem para o topo, que cursassem universidades, que ocupassem posições no mundo da política, que o véu da discriminação fosse dissipado, cursando as escolas universitárias e disputando o mercado mano a mano com os brancos, em posições de igualdade no conhecimento. Se permanecessem como força de trabalho auxiliar – mecânicos, eletricistas, técnicos na enfermagem, etc, continuariam ocupando posições subalternas na sociedade e jamais poderiam atingir o ápice.
Existiam até segmentos na sociedade norte-americana racista que defendiam um expurgo ou retorno de contingentes de negros para a África o que também era inconcebível, uma vez que o afro-americano já radicado nos Estados Unidos há dois séculos se considerava, de direito e de fato, cidadão norte-americano. A África era a ancestralidade, a integração, o estudo cientifico e onde eles estavam e ajudaram a construir o país, sim os EUA eram a sua Pátria.
A luta demorou anos, mas o êxito foi alcançado. Não que haja igualdade total, pois ainda há desníveis. Comparando-se, no entanto, com o que existe no Brasil, a diferença é muito grande. Os afro-americanos vivem muito melhor e ocupam posições mais destacadas na sociedade do que os afro-brasis e afro-mestiços-baianos que ainda vivem nos guetos e não conseguem chegar nem na porta das universidades.
Du Bois mostra no seu livro que foram criados 34 institutos e universidades para negros nos EUA no final do século XIX, ele próprio formado em Fisk, em 1888, e a Bahia só foi ter sua primeira universidade pública, em 1946, majoritariamente ocupada pelos brancos. E a nossa lei das cotas só nasceu no século XXI, 2017, no governo Dilma Rousseff.
Não dá nem para fazer comparações diante do que Du Bois coloca em “As Almas do Povo Negro” e exemplos de episódios de toda natureza não faltaram para a afirmação dos afro-americanos, desde as lutas diretas nas cidades contra o apartheid, a participação dos afro-americanos na II Guerra Mundial, a criação das escolas normais e universidades no Alabama, Tennessee, Virginia (Hampton), Ohio (Wilberforce), Pensilvânia (Lincoln, duas); Carolina do Sul (Clavin), Carolina do Norte (Shaw), etc e não faltaram tenacidade, empreendedorismo e o uso da voz, do discurso, das concentrações de massa.
A Universidade de Oberlin (Ohio) foi a primeira a aceitar estudantes afro-americanos (1835) e mulheres (1837) época em que, no Brasil, ainda exista a escravidão só abolida em 1888. E observem mais: a Universidade de Harvard existe desde 1636. Vê-se, pois, a enorme diferença entre os dois países e as situações dos negros.
Voltando ao cerne do livro de Du Bois são 14 capítulos todos antecedidos da preposição sobre que significa um limite concreto no espaço/tempo: sobre os conflitos espirituais, sobre o raiar da liberdade, sobre o Sr. Booker T. Washington, sobre o significado de progresso, sobre as asas de Atlanta, sobre a formação dos homens negros, sobre o Cinturão Preto, sobre a busca do Velo de ouro, sobre os filhos do senhor de escravos e sobre o homem, sobre a fé dos ancestrais, sobre o falecimento do primogênito, sobre Alenander Grunmell, sobre a vinda do precusor, sobre as canções de lamento. Em todos esses textos, na introdução, põe um spiritual – gênro musical composto por afro-americanos - negros escravos, libertos, abolicionistas e outros que são a raiz do gospel, do jazz, do blues e marcaram o sobre (tempo/espaço), muitas dessas músicas interpretadas anos depois por grandes nomes da musica nos EUA no século XX.
Há dois capítulos que destacaria como os mais emotivos e fortes do livro: sobre as asas de Atlanta e sobre os filhos do senhor de escravos e sobre o homem. No primeiro, a inspiração vem do Black boy of Atlanta, do poeta abolicionista John Greenleaf Whittier (1807-1892). Num trecho diz: “Hoje, o Sul lamenta o lento, porém, ininterrupto, o desaparecimento de um certo tipo de negro – o leal e cortês escravo de outros tempos, com sua honestidade incorruptível e seu temperamento humilde e digno. Ele está morrendo com o velho modelo do cavalheirismo sulista".
Um pouco mais: “Infelizmente, o velho Sul se equivoca em relação à educação humana, desprezando a educação das massas e não dando apoio as escolas superiores () por que não aqui, e talvez em outros lugares, implantar de forma profunda e definitiva centro de aprendizado e convívio, faculdades que possam enviar todos os na os para a vida sulista alguns brancos e alguns negros, de cultura abrangente, tolerância ampla e habilidades refinadas, caminhando de mãos dadas e estabelecendo uma paz decente e digna para esse embate de raças? () a construção de homens e nações é feita dessa forma e não de cabeça para baixo”.
No outro texto (Sobre o filho do senhor dos escravos e sobre o homem) abre com o spiritual “I’m Rolling (de Wallace Wills, liberto que vivia com os Chotaws, 1820-1880), cuja refrão é: “estou vagando, estou vagando, por um mundo hostil/Oh! Irmãos, vocês vão me ajudar? Du Bois escreve: “É um dever de todas as pessoas honradas do século XX garantir que no futuro da competição entre as raças a sobrevivência do mais apto significa o triunfo do bem, da beleza e da verdade, que possamos preservar para a civilização futura tudo que existe de elogiável e nobre e poderoso, e não continuar premiando a ganância, o despudor e a crueldade”.
Não esqueçam que os textos de Du Bois foram escritos no final do século XIX. Posteriormente, ele se queixou (a si mesmo) de não ter adicionado em novas edições os ensinamentos que aprendera sobre Sigmund Freud e Karl Marx (Du Bois morreu em Acfra, Gana, 1963, com quase 100 anos de idade e se tornara socialista e estudioso de Marx e do impacto de sua obra na sociedade capitalista do século XX).
Por isso mesmo, no texto em epigrafo ele cita que “Entre essas armas (que os afro-americanos teriam) talvez a mais eficiente do mundo moderno seja o voto; e isso me leva a refletir sobre a terceira forma de contato entre brancos e negros no Sul – a atividade política. () Como eles poderiam se proteger daqueles que não aceitavam sua liberdade e estavam determinados a impedi-la? Não através da força, disse o Norte; não através da tutela governamental, disse o Sul; pelo voto, então, é a única forma de defesa de um povo livre, disse o Bom Senso da Nação”.
Creio, dispensar mais comentários sobre “As Almas do Povo Negro”, de W.E.B, du Bois. É claro que, aqueles que lerem o livro, primeiro devem entender o pensamento do autor no tempo/espaço da época; mas, também, isso não impede, de a olhos atuais, observar os avanços que aconteceram não só nos Estados Unidos em relação a negritude, a situação do Brasil – ainda em atraso sistêmico, os negros-mestiços em pobreza endêmica, na sua maioria – e de outros países que passaram pela escravidão.